Na última semana, docentes de todo o país participaram de manifestações pelo cumprimento da Lei do Piso, que vem sendo desrespeitada na maioria dos estados e municípios, apesar de já ratificada pelo Supremo Tribunal Federal. As reivindicações vão além da questão salarial: as professoras e os professores pedem também a aprovação de planos de carreira e outros elementos de valorização da profissão.
Tudo isso está no bojo de um movimento de luta pela profissionalização da docência que começou há 30 anos, e que tem ganhado força com a reação dos educadores às reformas que significaram a precarização do trabalho e a implantação de sistemas de avaliação e de medição de desempenho.
Sobre o tema, o Observatório da Educação entrevistou Miguel González Arroyo, professor emérito da Universidade Federal de Minas Gerais e autor de livros como "Ofício de Mestre: imagens e auto-imagens" [Vozes, 2001] e "Imagens Quebradas: Trajetórias e Tempos de Alunos e Mestres" [Vozes, 2004]. Acaba de ter uma coletânea de textos publicados no livro "Miguel González Arroyo - Educador em diálogo com nosso tempo", pela Editora Autêntica, como parte da coleção Perfis da Educação. Leia a seguir a entrevista na íntegra.
Observatório da Educação – O que a Lei do Piso representa para o movimento sindical docente hoje?
Miguel González Arroyo – A luta pelo piso salarial tem algumas dimensões históricas muito interessantes. Está associada ao que chamaria de luta pela afirmação da identidade de trabalhador. A partir das greves do final dos anos 1970 aqui em Minas Gerais, por exemplo, o sindicato docente passa a se afirmar como um sindicato de trabalhadores em educação. Essa luta trabalhista tem estado presente, de forma muito tensa, nos últimos 30 anos.
Tensa porque se confronta com uma identidade de funcionário público. Professor funcionário público, diríamos, “agradecido” ao Estado, ao município, à secretaria, por ser membro desse mesmo Estado, município, secretaria. Essa ideia de trabalhador radicaliza, no meu entender, a identidade docente. E radicalizou o próprio movimento docente. Uma coisa é o movimento docente de funcionários públicos e outra é o movimento docente de trabalhadores. De maneira que os sindicatos docentes se filiam à CUT, como querendo dizer: nossas lutas se pautam pelas lutas históricas do movimento operário. Nesse momento, movimento operário e movimento docente se identificam, ou melhor, o movimento docente vai adquirir uma radicalidade que nunca havia tido.
Observatório – Esse processo começou a acontecer a partir dos anos 80?
Arroyo – Sim, final dos 70, começo dos 80, em plena ditadura militar. É quando a chamada associação de professores primários, em Minas Gerais, por exemplo, passa a se chamar União dos Trabalhadores em Educação. Veja o salto identitário que isso representa. Essa mudança tão radical da identidade docente leva a uma radicalização do próprio movimento docente, que passa a pegar emprestadas as formas de luta do movimento operário: greves, greves de fome como aconteceu em 79, etc. E, sobretudo a vinculação dos sindicatos docentes às centrais sindicais.
Esse dado é muito importante para compreender o que significa a luta pelo piso salarial. Porque as lutas docentes passam a ser lutas de trabalhadores. Lutas por salários, carreira, estabilidade, previdência. As mesmas lutas históricas. Nessas três décadas, a CNTE e os sindicatos de professores todos tiveram como fronteira ter um piso salarial único. Conseguiram que o Estado aprovasse a lei e reconhecesse que todo professor, independente da região, tem direito a um piso salarial mínimo. Veja que isso é o básico, segue a mesma trajetória de luta pelo salário mínimo, e a mesma trajetória de outras categorias, como engenheiros, arquitetos, que também possuem um nível salarial básico.
Mas esse piso salarial único cria um problema. Ele chega num momento em que está havendo uma desestruturação do próprio movimento operário, de suas lutas e conquistas. Os direitos do trabalho estão muito mais fracos que há 30 ou 40 anos. Isso acaba enfraquecendo o próprio movimento docente, que se afirma trabalhador e que luta por direitos do trabalho.
Esses direitos estão em crise. E isso em todo o mundo, basta a ver as manifestações que estão acontecendo na França, por exemplo, por causa da flexibilização dos direitos trabalhistas. Ou a luta dos trabalhadores da Europa, diante das reformas que estão acontecendo como resposta à crise, que servem para acabar com os direitos do trabalho. É um momento pouco propício. Diante dessa situação, os governos reagem, não reconhecendo o piso salarial. Resistem em não reconhecer as conquistas do movimento docente no campo dos direitos do trabalho. Não só o salário, mas a questão de um terço de atividades extraclasse, planos de carreira etc.
Há um dado que também deve ser levado em consideração. Por que os professores reagem, depois de um período de uns dez anos em que pareciam estar adormecidos? Aconteceu um fenômeno na categoria docente. É a titulação docente. Há 30 anos havia uma quantidade de docentes leigos, a maior parte normalista, de nível médio. Hoje a maioria tem uma formação de graduação e de pós-graduação, inclusive. Então os professores, na medida em que fizeram um esforço tão grande por se qualificar, estão exigindo equiparação com outros profissionais titulados com a mesma formação e que têm salários muito maiores do que eles, que ainda são tratados como normalistas.
Observatório – O reconhecimento de uma identidade de trabalhador não entra em conflito com essa reivindicação de uma identidade de profissional?
Arroyo – Não, pelo contrário. Dá à docência uma radicalidade política maior. Porque ser docente não é ser um caridoso, um amoroso, não é uma vocação. É uma profissão. Esse é um ponto muito interessante. A tentativa tem sido sempre vincular a docência com a caridade, o compromisso, dedicação, vocação até de Deus. Mas à medida que se afirmam como trabalhadores, profissionais, no campo da educação – como poderia ser no campo da saúde – nesse momento quebram a imagem romântica, de compromisso, vocação, dedicação. Avança-se no sentido de profissionalizar o trabalho docente, o que é extremamente positivo.
Observatório – O Sr. afirma que há uma reação dos professores nos últimos 10 anos. Há um ponto de inflexão, uma retomada da mobilização como nos anos 80?
Arroyo – Sim, é isso que está acontecendo. Aquelas mobilizações dos anos 70 e 80 acontecem no bojo da luta pela cidadania, contra a ditadura. Tinham caráter muito político. Hoje elas têm caráter mais profissional. No sentido de que sou um profissional como qualquer outro. Não fui chamado por Deus para educar a infância, nem sou uma mãe que prolonga sua identidade em sala de aula. Essa profissionalização do trabalho feminino, e 90% da categoria é formada por mulheres, e essa conscientização da mulher de ser sujeito de direitos do trabalho, é diferente daquela mobilização que era mais ideológica, mais politizada. Quando estive presente agora em uma grande assembleia na greve dos professore de Minas Gerais, 80% eram mulheres. E são mulheres que têm consciência, que sendo mulheres não se convencem com a afirmação de que a atividade docente não é um prolongamento da atividade feminina de cuidar da infância.
Então é possível afirmar que essa mobilização tem um caráter muito diferente. Primeiro, como eu dizia, pela titulação crescente das professoras. Elas dizem: eu passei tanto tempo me formando, eu quero ter a mesma remuneração que outros profissionais que têm a mesma formação. Por que meu salário é inferior ao de um advogado, de um administrador? Isso leva à retomada da luta no campo profissional.
Segundo, a própria profissionalização da mulher, que sai da esfera privada para a esfera pública, a esfera do trabalho, a leva a reivindicar direitos do trabalho. O que está radicalizando o movimento docente hoje são as mulheres, a partir de sua consciência de serem profissionais que exigem os mesmos direitos de outros profissionais.
Há uma questão que também está levando a isso. São questões de não reconhecimento. Há uma onda muito forte na mídia, por exemplo, que apresenta a profissão docente naquela visão antiga, e vocação, de amor. No dia da professora, do professor, aparece muito aquela mesma imagem de professora dedicada. Há uma reação a essa visão tão deturpada da imagem docente, e da imagem docente feminina.
Observatório – Parece haver também, nos discursos presentes na mídia, uma diminuição do próprio papel docente, com o advento das tecnologias...
Arroyo – Exatamente. É curioso, há uma contradição aí. Ao mesmo tempo em que a educação não é cada vez mais, um ato de boa vontade, e sim uma questão de tecnologia, de saberes, de domínios, de qualidade, de quem se exige tudo isso? Do professor. Hoje, as exigências de escola de qualidade pressionam o docente de maneira violenta. Com as medidas de qualidade, através de resultados de avaliações, IDEB, Provinha Brasil, quem se responsabiliza por tudo isso são os professores. Inclusive se produzem, como em São Paulo, medidas de premiação ou castigo em função dos resultados de avaliações, de mérito.
Observatório – Essas reformas de gestão orientadas por resultados também contribuíram para a retomada das mobilizações?
Arroyo – Sim, foi um dos motivos. Porque na medida em que vinham, nos últimos 30 anos, tentando construir uma identidade profissional – e a campanha era “trabalho igual, salário igual” –, houve uma reação muito grande de controle por parte das administrações, dizendo: não, é “salário melhor para quem tem rendimento melhor”, e “salário pior para quem tem rendimento pior”. Uma série de mecanismos de controle como nunca tivemos no magistério. A reação foi dizer basta de sermos tão controlados, com salários e condições de trabalho tão miseráveis.
Outra questão é a imagem de “perigo” com que a mídia retrata a docência, perigo este que vem dos próprios educandos. As imagens da infância e adolescência popular que chegou às escolas nas últimas duas décadas são tão negativas, tão inferiorizadas – de que são violentos, desatentos, desinteressados, indisciplinados – que isso cria uma tensão na própria docência. Trabalho esse tema no livro Imagens Quebradas [Editora Vozes, 2004]. Diante das “imagens quebradas” das crianças e adolescentes nas escolas, estariam quebrando a própria imagem dos docentes. A infância e adolescência que chega à escola não é a mesma de há 30 ou 40 anos, é outra. São os filhos dos desempregados, das favelas, os negros, meninos de rua, da periferia. O trabalho docente dobrou. Hoje é mais difícil trabalhar com esses adolescentes. O professor está esgotado, não aguenta. Tudo isso está fazendo com que haja uma repolitização do movimento docente.
Observatório – O Sr. identifica outros elementos nas últimas mobilizações pelo piso?
Arroyo – Por que a resistência dos gestores em aplicar o piso, apesar de já ter sido aprovado e mesmo ratificado pelo Supremo Tribunal Federal? A área de educação carece de políticas de Estado. São apenas projetos. Carece sobretudo de políticas de direitos do trabalho. A maior parte das questões tratadas no MEC ou CNE são relativas ao currículo, ao sobre como e o que ensinar. Mas a estrutura de trabalho que temos hoje é a mesma de há 30 ou 40 anos. É um modelo de professor aulista, o que é terrível. Sendo aulista, você tem que correr para ter aulas, em vários turnos. Sem contrato ou vinculação como uma escola. Isso o torna muito vulnerável, indefinido enquanto profissional de uma matéria.
Outra questão interessante que tem sido revelada pelas lutas pelo piso salarial é que, apesar de ser uma lei federal, cada secretaria de educação, governo do estado ou municipal faz o que bem entende. O sistema educacional está entregue ao que fala a Constituição: o regime de colaboração entre os entes federados. Cada ente é dono de seu quintal. O governo de Minas falou: não respeitamos o piso salarial. E não respeitaram. Você pode trabalhar na rede municipal de Belo Horizonte e ganhar 1.600 reais. E dar aula na escola em frente, que pertence à rede estadual de Minas, e receber 600 reais. A Constituição criou essa figura lamentabilíssima de que a educação é administrada em regime de colaboração entre os entes federados. Não temos um Sistema Nacional de Educação que estabeleça normas. Não temos conseguido criar uma categoria única nacional de professores.
Observatório – A criação de uma prova nacional para o ingresso na carreira, que terá início em 2012, contribui para isso?
Arroyo – Eu acho que não. Isso é apenas para dar elementos em uma espécie de banco de dados para as prefeituras que não tem recursos sequer para fazer uma prova para, se quiserem, e apenas se quiserem, aproveitar esse banco de dados para contratar seus profissionais. Não tem um caráter de política nacional. É como um programa de auxílio complementar. O problema fundamental é que o MEC não tem autoridade para impor aos sistemas dos entes federados os critérios de entrada na profissão docente, e os salários que devem ser pagos. Esse é um problema da Constituição. É uma colaboração franciscana: São Francisco queria que o lobo e o cordeiro bebessem água juntos. Aí não dá.
Observatório – No Observatório da Educação, constatamos, já há alguns anos, a ausência dos professores do debate público sobre educação. Eles não são tomados como fonte, apesar desse movimento de repolitização de que o Sr. fala. A que se pode atribuir isso?
Arroyo – Quando há um problema na ordem jurídica, a OAB fala, e tem peso. Eles têm voz, tem mecanismos para fazer a sociedade ouvir essa voz. O mesmo acontece com os médicos, com o Conselho de Medicina. Isso porque uma categoria profissional se afirma quando ela tem voz, e tem instituições fortes que servem de veículo para essa voz. A CNTE, a Apeoesp ou o Sindiute tentaram ser isso, mas muito pouco. A própria Andes, do ensino superior, tentou também, mas não conseguiu.
Observatório – Quer dizer, não são reconhecidos como especialistas em educação, como autoridade?
Arroyo – A Associação de reitores fala mais alto do que a Andes. O mesmo acontece na educação básica. Os secretários de educação ou o MEC fala por todos nós. Por isso um economista fala sobre educação, e não entende nada sobre educação, absolutamente. Apesar de haver tantos educadores que poderiam ser secretários de educação, ministros, ou fazer parte do Conselho Nacional de Educação etc, não tem. Isso para mim revela o trato infantilizado que se tem ainda do professor – a professorinha, essa ideia. E aconteceu um fenômeno muito sério. Na medida em que houve uma feminização da profissão docente isso leva, em nossa cultura machista, a uma desvalorização dessa profissão. Apesar do movimento feminista, a mulher ainda não tem vez, não tem voz.
Observatório – No seu livro Ofício de Mestre, o sr. diz que, entre as críticas que se faziam aos professores dentro do próprio movimento sindical docente, estava a de serem despolitizados. O sr. ainda vê isso, acha que os sindicatos têm dificuldades para mobilizar a categoria?
Arroyo – Acho que os sindicatos docentes continuam com uma visão de politização muito ideologizada, no estilo com que trabalhava o movimento operário, revolucionário. Como eu dizia, hoje a profissionalização docente caminha em outra direção. Isso não quer dizer que não tenham consciência. Hoje a mulher docente que não participa de passeatas, que não é do PT, ou do PCdoB, não quer dizer que não tenha consciência de seus direitos. Mas essa outra politização, mais profissional e menos ideológica, não foi percebida nem valorizada pelas lideranças do próprio movimento docente. Quando tivemos 115 dias de greve, nem todos eram radicais. Mas se mantiveram em greve, durante todo o tempo, com cortes de salário e tudo. É uma outra forma de politização. Custa-se a perceber isso, porque a maior parte dos sindicatos docentes foi ocupada por partidos políticos. Aqui em Belo Horizonte mesmo, de todas as grandes lideranças do final dos anos 70 e 80, do Sindiute, ninguém mais está dando aula. Trabalham em prefeituras, são conselheiros, vereadores. Houve uma politização partidária, que, ao que me parece, descaracterizou essa outra politização profissional que está acontecendo.
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